Decisão liminar do ministro Nunes Marques determina que municípios não têm competência para criar ou explorar serviços lotéricos; Anápolis, Caldas Novas, Aparecida de Goiânia, Matrinchã e Trindade são diretamente afetadas
O Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, na última quarta-feira (03/12), todas as leis municipais do país que criaram loterias próprias ou autorizaram a exploração de apostas esportivas, conhecidas como bets. A decisão liminar, proferida pelo ministro Nunes Marques na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1.212/SP, atinge diretamente cinco municípios goianos: Anápolis, Caldas Novas, Aparecida de Goiânia, Matrinchã e Trindade.
A determinação judicial é categórica: os municípios não possuem competência constitucional para legislar ou explorar serviços lotéricos, uma vez que a matéria não se enquadra como assunto de interesse local. Segundo o entendimento do ministro, essa competência é exclusiva da União para legislar, enquanto a exploração do serviço cabe apenas aos Estados e ao Distrito Federal.
As leis goianas sob suspensão
As cinco cidades goianas aparecem explicitamente citadas na ação por terem editado normas municipais criando ou autorizando loterias nos últimos três anos. Em Anápolis, a Lei Complementar nº 535/2023 instituiu a Lotan. Caldas Novas criou sua loteria municipal por meio da Lei nº 3.525/2023. Aparecida de Goiânia aprovou a Lei nº 3.771/2024, Matrinchã editou a Lei nº 294/2025, e Trindade estabeleceu sua loteria pela Lei nº 2.301/2023.
Esses municípios foram utilizados como exemplos do que o ministro Nunes Marques chamou de "efeito multiplicador" e "metástase inconstitucional" - a rápida proliferação de leis similares em todo território nacional. Segundo a decisão, mais de 80 municípios brasileiros já haviam editado atos normativos criando loterias nos últimos três anos, com cerca de 55 deles apenas em 2025.
Fundamentos da decisão
O ministro Nunes Marques fundamentou sua decisão em três pilares principais. Primeiro, destacou que a exploração de serviços lotéricos não se caracteriza como interesse local, requisito constitucional para que municípios possam legislar sobre determinada matéria. Diferentemente de serviços como transporte coletivo local, iluminação pública ou coleta de lixo, as loterias têm natureza, complexidade e repercussão que extrapolam os limites municipais.
O segundo argumento reside na tradição legislativa brasileira. Desde o Decreto nº 3.638/1900, a legislação federal sempre autorizou apenas Estados a explorar loterias, jamais municípios. Essa orientação foi mantida em toda evolução normativa, inclusive nas leis mais recentes que disciplinam apostas de quota fixa - as Leis nº 13.756/2018 e 14.790/2023.
Por fim, o ministro enfatizou os riscos sociais e financeiros das atividades lotéricas, especialmente das apostas esportivas. A matéria exige, segundo ele, uniformização normativa, controle centralizado, fiscalização rigorosa e estrutura regulatória robusta - incompatíveis com um regime de exploração municipal pulverizado em mais de 5.500 municípios.
Riscos ao pacto federativo
A decisão aponta que a proliferação descontrolada de loterias municipais cria riscos concretos ao equilíbrio federativo. Nunes Marques destacou que algumas normas municipais inovaram na disciplina federal sobre o repasse de valores arrecadados, gerando desequilíbrio não apenas pela contrariedade à repartição constitucional de competências, mas também por promover tratamento desigual entre entes que deveriam seguir regras idênticas.
Outro problema identificado é a possibilidade de guerra fiscal entre municípios, com a flexibilização de controles e oferecimento de vantagens para atrair empresas operadoras. Além disso, a ausência de fiscalização centralizada permitiria que casas de apostas não autorizadas pela Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda operassem livremente, criando insegurança jurídica e mercado incompatível com os princípios constitucionais da ordem econômica.
O ministro foi enfático ao afirmar que "a legislação local não tem o condão de retirar da clandestinidade" empresas não credenciadas pelo governo federal, caracterizando como "aberração jurídica e financeira" a situação de atividades econômicas proibidas em nível federal, mas aparentemente autorizadas em milhares de municípios.
Alcance e consequências práticas
A liminar determina a suspensão imediata de todas as leis municipais que criaram loterias em todo o país, a interrupção de operações já iniciadas por empresas contratadas pelas prefeituras e a proibição de novos atos que tentem iniciar ou retomar atividades lotéricas municipais. Todos os procedimentos licitatórios em curso também ficam suspensos.
Para garantir o cumprimento da decisão, o ministro estabeleceu multas diárias de R$ 500 mil para municípios e empresas que descumprirem a ordem, e de R$ 50 mil para prefeitos e presidentes de empresas que insistirem na exploração das atividades lotéricas, sem prejuízo da apuração de eventual responsabilidade criminal por descumprimento de ordem judicial.
A Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda (SPA/MF), a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e a Associação Nacional de Jogos e Loterias (ANJL) foram intimadas da decisão para que adotem as providências cabíveis, inclusive no que se refere ao bloqueio de sites e plataformas.
Impacto em Goiás
Com a decisão, todas as iniciativas de loterias municipais em território goiano ficam imediatamente paralisadas. Cidades como Anápolis e Caldas Novas, que já estavam em fase avançada de implementação de suas loterias, com contratos firmados e operações em andamento, terão de suspender tudo imediatamente.
A medida também impede que outras prefeituras goianas criem loterias próprias enquanto o STF não julgar o mérito da ação. A decisão liminar será submetida ao referendo do Plenário do Supremo em sessão extraordinária virtual, mas já produz efeitos imediatos.
O caso evidencia o conflito entre a busca por novas fontes de arrecadação municipal - especialmente em tempos de crise fiscal - e os limites constitucionais da autonomia local. Para muitas prefeituras, as loterias representavam estratégia essencial para fortalecer receitas e financiar políticas públicas voltadas a áreas como seguridade social, cultura e esporte.
A questão agora será definitivamente decidida pelo Plenário do STF, que terá a palavra final sobre a constitucionalidade ou não das loterias municipais no Brasil.
Íntegra da decisão: [Portal STF] - https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=15382783452&ext=.pdf
Fonte: Supremo Tribunal Federal (STF) - ADPF 1.212/SP
Documentos consultados: Decisão liminar do ministro Nunes Marques e informações do Jornal Opção
Foto: Senado Federal - STF

